Domingo teve toré na Aldeia do Povo Pankararu, que fica localizada entre os municípios de Jatobá, Tacaratu e Petrolândia, no sertão de Itaparica, Pernambuco. O som dos maracás marcava o compasso da dança ritmada, pelo terreiro rodopiavam senhoras, senhores, jovens e crianças numa mistura de fé e devoção. Os cânticos aos seus ancestrais ecoavam pelas serras encantadas e caprichosamente os deuses deram um descanso ao tempo. Pela magia das palavras fui convidada a uma viagem ao passado. Apaixonada por histórias, mergulhei de cabeça e através do novo livro do biógrafo José Leal fui ao encontro das memórias de um patrimônio da música popular brasileira, João Pernambuco, filho desse território, originalmente habitado pelos povos indígenas Pankararu e mais tarde também por vaqueiros, ferroviários, doceiras, feirantes, rendeiras, tocadores de viola. No seu livro intitulado “Raízes e Frutos de João Pernambuco”, o autor José leal nos presenteia com uma viagem de reconstituição pela vida e obra desse genial compositor, que de nascença teve o sertão de Pernambuco como berço, a lua como lamparina, o santo Rio Velho Chico como bênção, mas como quase todo sertanejo, teve uma vida severina, como nos lembra João Cabral de Melo Neto, um outro imortal pernambucano. É uma viagem provida de rica pesquisa que se nutriu de informações irrefutáveis, indo ao informante original, de primeira mão, com histórias orais dos familiares, depoimento de músicos que tocaram com João Pernambuco e violonistas intérpretes de suas músicas. Na longa caminhada, o autor José Leal vai reconstituindo a trajetória desse ilustre filho de Bebedouro de Jatobá, nascido em 02 de novembro de 1883, quarto filho do ferroviário Manuel, que trabalhou na construção da Estrada de Ferro Paulo Afonso, e da rendeira Teresa, batizado por João Teixeira Guimarães e imortalizado pela alcunha de sua terra – João Pernambuco.
Em cada capítulo do seu percurso de vida, ao tempo que acompanhamos o crescimento de João Pernambuco como artista autodidata, que deixa o sertão aos 12 anos de idade rumo ao Recife, e aos 21 para o Rio de Janeiro, também somos levados ao contexto social, cultural e econômico da época e mergulhados nos seus dilemas, nas injustiças da segregação racial, na imposição da burguesia sobre os fazedores de arte popular musical. O biógrafo José Leal também nos apresenta uma série de passagens sobre as inúmeras adversidades que João Pernambuco precisou enfrentar para realizar o seu sonho de ser músico, compositor, e assim como as canções que compôs – como choro, toadas, samba, coco, cateretê, maxixe, entre outros ritmos populares relegados pela elite -, ele também um dia entrou pela porta da frente, arrancou aplausos, entrou para a história da música popular brasileira. Contemporâneo de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, e companheiro de Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Dilermando Reis, Américo Jacobino (Canhoto), entre outros grandes músicos, João Pernambuco nos deixou uma produção musical grandiosa, até hoje estudada e difundida pelo mundo. E o autor ainda nos traz preciosas informações sobre a sua musicografia, intérpretes, gravadoras, reinterpretações, homenagens, bem como novos nomes da presente geração que continuam sendo influenciados, a exemplo do violonista Caio César Sitônio, Igor Nunes, Lucas Oliveira, Arruda, o cantor e compositor Gean Ramos Pankararu, de Jatobá, o músico Gabriel Alexandre de Petrolândia. Em seu novo livro, José Leal faz um resgate histórico do legado de João Pernambuco, esse filho de Bebedouro de Jatobá, antiga Petrolândia, que aprendeu a tocar viola ainda menino no sertão, e ainda que não tivesse tido a oportunidade de aprender a ler e a escrever, soube desde cedo a refinar seus ouvidos e compor magistralmente dezenas de canções que rememoram as belezas de sua terra, de sua gente, tornando-se não apenas o pioneiro, mas também o precursor na difusão da cultura pernambucana e nordestina, consagrando-se pelo codinome Poeta do Violão. João Pernambuco é reconhecidamente um protagonista da história do violão brasileiro e personagem do patrimônio da música popular brasileira, e como bem diz o amigo José Leal “Há um João em cada arranjo, em cada viola”. Portanto, conhecer a sua vida e a sua obra é manter viva a memória desse artista genial tão presente seja nos bailes do Rio de Janeiro, nos folguedos populares do Recife, nas noites enluaradas nas terras sanfranciscanas, lembrando-nos que “não há, oh, gente, oh, não, luar como esse do sertão”. *
O Instituto de Arte Popular João Pernambuco, fundado em 2021, apresentará neste ano uma série de atividades em homenagem aos 140 anos de nascimento do ilustre compositor João Pernambuco, entre elas: o lançamento do livro Raízes e Frutos de João Pernambuco, de José Leal, ainda, em parceria com a Fundação Brasil Meu Amor, o álbum composto de dois CDs com 16 músicas interpretadas pela cantora e compositora Gláucia Nasser, com direção musical e arranjos de Paulo Dáfilin, direção artística de Júlio Cesarini e curadoria de José Leal.
Regina Borges Professora, escritora, coordenadora Regional do Instituto de Arte João Pernambuco.
*Luar do sertão, música de João Pernambuco e letra de Catulo da Paixão Cearense.